Por: Camila Faraco
Fotos: Jô Follha
Há cerca de um ano, um homem mora na
rua. Como outras centenas na mesma situação, ele mora na rua, mas com um
detalhe: tem endereço. Rua Senador Mendonça, número zero. Chegou há
mais de um ano e logo depois ganhou a companhia de uma mulher. Ali
firmaram ponto fixo, com barracas enjambradas de lençol e papelão. Assim
como se monta uma caverna imaginária em brincadeira de criança, é uma
casa frágil e invisível. Mas a cena é triste. Porque se trata de gente
já crescida. Que não teve oportunidades e perdeu a luta para a
desigualdade social e, principalmente, para as drogas.
O poder municipal, através da Secretaria
de Justiça Social e Segurança (SJSS), possui todos os dados do cidadão.
Nome, filiação, data de nascimento e endereço da família. A princípio, a
precisão da identidade nos cadastros oficiais contradiz com a falta de
serviços básicos que o homem não recebe.
Mas a verdade é que, assim como ele,
vários chamam a rua de lar. A falta de privacidade e a insegurança são
compensadas pela possibilidade de ditar as próprias regras. Assim, é
permitido sumir, mesmo do não-lugar a que pertencem. Como o símbolo de
quem também quase não existe, é difícil encontrar o homem em seu
“endereço”.
Os moradores das casas dizem que é comum
ficarem vários dias seguidos sem avistar o residente da calçada que,
aliás, não mantém os melhores laços com a vizinhança. Uma dona de casa
que não quis ser identificada sente-se apreensiva com a presença dele.
“Tenho pena, mas tem limites”. A reclamação é sobre a sujeira e a
bagunça do local. Inclusive um abaixo-assinado já foi feito para tirá-lo
dali.
Por enquanto, a situação segue como
está. Na tentativa de prover oportunidades para moradores como o da rua
Senador Mendonça, agentes da SJSS realizam um esforço contínuo. Mas é no
Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua
(Centro Pop) que o acompanhamento dessas pessoas tem base fixa. Como
define a supervisora do local, Cláudia Rodrigues, um trabalho “de
formiguinha”, desde o recolhimento noturno à assistência para habitação e
saúde. Na rua Gonçalves Chaves, ponto nobre da cidade, uma casa ampla
agrega vários perfis: moradores de rua, ex-apenados, dependentes
químicos, desempregados e guardadores de carro. À equipe de auxílio,
reuniram-se assistentes sociais e psicólogas.
Para receber os 500 cadastrados, a casa
tem regimento próprio. Até as 13h30min é o horário de banho. Às 15h é
servido o lanche. Os usuários recebem ticket alimentação para o
Restaurante Popular. Recém instalado no novo endereço, o local ainda
apresenta problemas estruturais - computadores para as aulas de
informática estão sem acesso à internet, por exemplo - mas as atividades
já estão em andamento.
Satisfeita, a pedagoga Ivana Couto
mostra o resultado da oficina de sabão: dois exemplares do tipo vegetal.
Ela ministra aulas através do Programa Educacional de Jovens e Adultos
(Peja). A maioria dos frequentadores é do sexo masculino, analfabeto e
com faixa etária entre 20 e 50 anos. Alessandra Silva é uma das raras
mulheres. Aparece de vez em quando para receber as lições. Quando morava
na rua, batia ponto no Centro Pop. Agora que largou o vício, chega para
visitar os amigos. “Não pode dar as costas para quem ajudou”, conta.
Ela completou apenas a terceira série e adora matemática. Mãe de três
filhos, o sonho é voltar à escola e arranjar um bom emprego.
Também
há casos de ex-profissionais, com carreiras sólidas, que se perderam no
vício. “A droga entra e rompe tudo. É incalculável”, afirma a
professora. Outros demonstram sensibilidade nem sempre aflorada.
Compenetrado entre papéis e lápis de cor, Ivanir Machado diz que
“desenha pela imaginação”. Cuida de carros mas quer melhorar de vida.
Largou os estudos na quarta série porque caiu na facilidade das ruas.
A moradia na rua e o uso de drogas andam
lado a lado. Segundo a gerente de média complexidade da SJSS, Úrsula
Buss, 96% dos atendidos pelo Centro são usuários de drogas. Se no órgão o
consumo é proibido, a rua se mostra sedutora. “Não tem horário, dá para
ganhar uns trocados e usar droga à vontade. É muito difícil competir”,
afirma. A funcionária lembra de quando um morador recebeu banho, comida e
colchão. Acostumado com o chão duro, as dores nas costas começaram a
aparecer. Então, proferiu uma frase que sintetiza a triste constatação:
“Quando a gente fica limpo, nossas doenças aparecem”.
Funcionários homens são apenas os
vigilantes, todos terceirizados. As coordenadoras convivem quase que
diariamente com as ameaças. Uma delas teve os pneus do carro furados.
Para aguentar, elas afirmam que precisam ser apaixonadas pelo que fazem.
Sobre os desafios da liderança feminina, Úrsula explica a dualidade:
“Tem que ser general de vez em quando. Mas tem outras vezes em que é uma
vantagem”. O envolvimento é grande e lida com várias faces emocionais
dos usuários, carentes de tudo. Inclusive, muitas vezes, de amor
materno.
Os vínculos afetivos, portanto, podem
ser variados. Fiéis companheiros, os cães rondam o Centro Pop na espera
de seus donos. Uma das ideias da coordenação é fazer um trabalho de
conscientização e cuidado com os animais. Projetos de inclusão social
estão sempre se renovando. Um deles é uma mostra fotográfica com
retratos de cada frequentador, forma de recuperarem a autoestima, a
dignidade e até mesmo o próprio reconhecimento, ao verem em imagens o
que representam a si mesmos.
Serviço: O atendimento é
aberto à população. Entretanto, o Centro Pop está atualmente com
cadastro restrito. Há a possibilidade de renovação de inscritos, já que
muitos não estão frequentando o local. Há ainda a disponibilidade de
espaço para voluntariado. Mais informações direto no local: rua
Gonçalves Chaves, 813. Telefone: (53) 3222-1587.
Fonte: Diário Popular