quarta-feira, 17 de julho de 2013

Atraso na entrega do Loteamento Anglo causa sofrimento em famílias contempladas

"Justificativas para paralisações nas obras levantam uma série de questões que não são totalmente esclarecidas pelo Poder Público".

Enquanto seu neto de sete anos e o amigo perguntam: "Tia, quando vamos ter nossa casa?", a avó Carmem Regina tem dificuldades, em meio ao choro, de conversar com a equipe de reportagem do Diário Popular. "Esse assunto me incomoda muito", diz. Em março do ano passado, após tempo de negociação sem resultado, a moradora do Anglo em Pelotas foi intimada por assistentes sociais da prefeitura a abandonar sua casa - um pequeno chalé em precárias condições - em dez dias, com a promessa de que em quatro meses teria uma casa de alvenaria. "Eu sabia que não cumpririam os prazos, minha casinha era humilde, mas confortável, por isso eu não queria sair", diz. Sem opção, Carmem foi morar com a filha e os dois netos de favor no terreno de um vizinho, em condições mais precárias ainda, onde está há mais de um ano e sem perspectiva de mudança.

O loteamento Anglo deveria ter hoje 90 casas e famílias em situação semelhante, porém, atualmente há uma desigualdade. De um lado, 58 famílias que foram sorteadas para as casas que já foram entregues, através da verba do PAC Farroupilha, obtida em 2008, para a construção de quatro loteamentos, entre eles o Anglo. No outro, as 32 famílias, entre elas oito que tiveram sua antiga moradia retirada, que aguardam a construção do restante do loteamento. A primeira parte estava prevista para ser entregue ainda no ano passado.
O drama de quem segue sem moradia
A esperança e a autoestima das famílias que permaneceram sem moradia no ano passado, tratado em matéria realizada pelo Diário Popular sobre o primeiro Natal na casa própria, que mantinham a fé de comemorar a virada deste ano em um lar digno, estão abaladas. Tão abaladas que Carmem Regina não consegue falar sobre o assunto sem chorar e ser amparada pela irmã e vizinhos que vivem a mesma situação.
Na atual condição em que vive, o forro de sua casa é uma lona plástica e o chão terra batida coberta por carpetes. A umidade e o frio que atravessam as fendas fazem com que situação seja ainda pior do que antes. "Eu morava em um chalé igual, mas ele era ajeitado e eu recém tinha dado uma arrumada nele. Na época uma assistente social veio aqui e me disse: 'Mora em uma tapera e não quer melhorar' e que se eu não saísse as máquinas iam passar por cima. Mas eu estava vendo que não iam cumprir o prazo, pedi que eles assinassem um papel dizendo que iam entregar a casa em quatro meses que eu saía e desconversaram", diz. "Agora sim eu moro numa tapera, há um ano e quatro meses. Minhas esperanças se foram", completa.
Clóvis dos Santos Cabistany também teve sua casa retirada. Apesar de também morar em um chalé, sua antiga moradia era "ajeitada", como afirma, e tinha cinco peças e um banheiro em área de terreno maior. Atualmente ele está em uma das casas entregues, porém a habitação tem apenas dois pequenos quartos, sala junto a cozinha e um banheiro, espaço insuficiente para acomodar ele, sua esposa mais os cinco filhos e a enteada. O quarto dos pequenos é ocupado por um beliche, uma cama e um colchão, sem espaço para armários ou guarda-roupa. O quarto do casal é dividido com os dois filhos menores. O restante dos móveis e eletrodomésticos está provisoriamente em um pequeno chalé.
"Eu disse na época que não queria sair porque esta casa não teria acomodação para toda a minha família. Para sair fizemos um acordo, além de uma casa eu ganharia um espaço de terreno, menor do que o que eu tinha, para poder acomodar o restante das coisas. Isso já faz mais de um ano e até agora nada."
Jogo de empurra-empurra
As justificativas para a parada da obra levantam uma série de questões que não são 100% esclarecidas pelo Poder Público. Em 2008 a cidade foi contemplada com verba do Programa de Aceleração do Crescimento Farroupilha (PAC), através do qual obteve recurso para diversas obras, entre elas quatro conjuntos habitacionais: Anglo, Ceval, Parque Farroupilha e Osório - destes apenas o Ceval já foi entregue. A assinatura do contrato foi realizada em maio daquele ano, pelo então prefeito Fetter Júnior (PP), e a contratação da empresa Artefatos de Concreto Pedro Osório (ACPO), vencedora da licitação para as obras de infraestrutura - rede de esgotos, terraplanagem, pavimentação e rede de água -, ocorreu em dezembro.
No final de abril de 2009 a empresa foi liberada para começar as obras. Um ano depois, o empreendimento vencedor do projeto de licitação para construção das casas - não só do Anglo, como do Ceval e do Osório -, Pérgola Arquitetura Construção e Restauração Ltda, abandonou o canteiro de obras devido a problemas financeiros. Seis meses mais tarde a prefeitura rescindiu o contrato e teve de abrir um novo processo de licitação com os valores atualizados. A contratação de outra empresa, Quality Engenharia Ltda, vencedora da nova licitação, porém, só ocorreu um ano depois, em setembro de 2011.
Estação elevatória travou o processo
Uma mudança de planos quanto à ligação da rede de esgotos do loteamento também travou as obras. O engenheiro do Sanep responsável pelo projeto, Arnaldo Soares, explica que inicialmente a rede de esgotos das casas do Anglo seria ligada a uma tubulação já existente, porém a declividade do terreno ficou acentuada e exigiu que o plano fosse alterado, já que a escavação do local era impraticável. Foi a partir daí que a Unidade Gestora de Projetos (UGP), optou por fazer uma nova estação elevatória que contemplasse também a região da Balsa.
O pedido foi encaminhado ao Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas (Sanep) em maio de 2011. Meses depois a autarquia enviou o projeto para o Setor de Representação de Desenvolvimento Urbano e Rural (Redur), da Caixa Econômica Federal. O presidente do Sanep, Jacques Reydams, afirma que o banco é muito rigoroso e exigente quanto aos processos apresentados e, em decorrência disso, o mesmo retornou com pedidos de adequações mais de uma vez.
A última vez que o projeto foi encaminhado à Caixa, segundo Reydams, foi em maio deste ano - três anos depois da decisão de criar a rede elevatória. No dia 11 de julho, porém, a Caixa afirma, via assessoria de imprensa, que solicitou documentos complementares ao Executivo e que a agilidade de seus processos depende do "do envio tempestivo e adequado da documentação solicitada".
Obras suspensas
Em março de 2011 a ACPO recebeu notificação de suspensão de serviço (veja no infográfico). "Executamos até onde dava, pois em determinado momento precisávamos da definição da estação elevatória de esgoto, pois dependendo da mudança isso traria alterações no nosso projeto original. Além disso, com o comunicado de suspensão, se a empresa executar algum serviço não poderá receber por ele", afirma o gerente comercial da empresa, Leandro Sabbado.
Segundo o responsável pela Quality Engenharia, Ubirajara Leal, o combinado era que a mesma deveria ir construindo e entregando as habitações. Assim, as primeiras residências foram entregues em janeiro de 2012 e as últimas em março. No dia 14 de maio, porém, a empresa também recebeu uma notificação de suspensão de serviço por parte da prefeitura, com a justificativa de "falta de liberação de área". De acordo com Leal, isso ocorreu porque algumas famílias se recusavam a deixar suas casas instaladas em área onde seriam construídas novas e em decorrência da não definição do local onde seria construída a estação elevatória de esgoto.
Informações desencontradas
O responsável pela UGP, Jair Seidel, afirmou à reportagem que todas as famílias retiradas de suas casas no ano passado foram acomodadas em outros locais pela prefeitura, o que não se confirmou. Desconfortável com as perguntas feitas pelo Jornal, o dirigente afirmou que quem pode precisar as justificativas quanto à demora de mais de dois anos para que o projeto do Sanep ficasse pronto é o presidente da autarquia. Já Reydams afirma não ter esta resposta por ter assumido o Sanep em janeiro.
Seidel ainda omitiu à reportagem que a empresa Quality Engenharia Ltda enviou pedido de rescisão de contrato - protocolado na prefeitura no dia 2 de julho - e até a terça-feira (16) à tarde afirmava que a mesma retomará as obras em agosto. A informação não foi confirmada por Leal. Com a rescisão, um novo projeto de licitação deverá ser aberto.
O gestor afirma que para agilizar o processo conseguiu aterro gratuito - sobra da obra de duplicação da BR-392 - e abriu uma licitação para encontrar uma empresa que leve o material para o Anglo. Como não apareceu nenhuma interessada, foi aberto um novo processo - o edital será publicado na quinta-feira. A prefeitura, via assessoria de imprensa, diz estimar que o aterramento esteja pronto até o dia 15 de agosto.
A comunidade do Anglo acredita que a medida esteja sendo feita na tentativa de ganhar tempo com a comunidade que já lotou a Câmara de Vereadores em uma audiência pública, no dia 14 de junho, onde pediu agilidade no processo. Sem respostas concretas sobre a demora, a mesma, com o apoio inclusive das 58 famílias que já foram contempladas, pretende procurar o Ministério Público (MP).
A indignação é referente, principalmente, às dúvidas que não são respondidas nem à comunidade, nem à imprensa. Se 58 casas foram construídas sem a rede elevatória de esgotos que seria ligada somente depois, por que não poderiam ser construídas as 90? Por que dois anos de demora para se fazer um projeto de rede elevatória? Até hoje, um ano depois, a rede de esgoto daquelas famílias está ligada diretamente no canal do Pepino, sem tratamento de efluentes.
Dos loteamentos do PAC Farroupilha, apenas o Ceval foi entregue. O Osório, assim como o Barão de Mauá - construído para as 152 famílias vítimas das enchentes de 2009 que moram em área de risco - aguardam o término de uma rede elevatória de esgoto que está em construção e ajustes na infraestrutura. Algumas casas do Barão de Mauá, porém, entregues à prefeitura em junho do ano passado, foram depredadas e precisam de conserto.
Retomada da obra
O valor total da obra do Anglo é de R$ 3 milhões (R$ 1,6 milhão com as habitações, R$ 1,2 milhão com infraestrutura e R$ 200 mil com o Centro comunitário entregue há uma semana), porém foi realizado apenas 64% do contratado, segundo Leal. O engenheiro afirma até hoje não ter recebido a última nota e, além disso, rescindiu contrato porque os valores assinados em 2011 hoje são impraticáveis. "Esperei um ano porque tenho compromisso com as coisas, mas agora não é viável mais", explica o engenheiro, que já teve grande prejuízo.
"A empresa comprou material hidráulico, esquadrias, entre outros itens para as 90 casas e para conseguir preço. Isso tudo está parado, sem uso", diz. Já o gerente comercial da ACPO, afirma que a empresa tem todo o interesse em retomar as obras, mas não pode fazer isso em decorrência da notificação para suspensão, sem que a prefeitura defina onde será instalada a rede elevatória de esgotos e sem os devidos ajustes de preços, já que os valores acertados em 2008, quando foi assinado o contrato, estão defasados.

Cronograma da obra
Maio de 2008 - Prefeito Fetter Júnior assina contrato para as casas do Anglo, Ceval e Osório, "lançamento do PAC"

Dezembro de 2008 - Assinatura de contrato com a empresa Artefatos de Concreto Pedro Osório (ACPO), vencedora da licitação para as obras de infraestrutura.

Abril de 2009 - Início das obras de infraestrutura

Abril de 2010 - Empresa Pérgola Arquitetura Construção e Restauração Ltda. abandona o canteiro de obras alegando problemas financeiros.

Setembro de 2010 - Contrato com empresa Pérgola Arquitetura Construção e Restauração Ltda. é rescindido.

Março de 2011 - ACPO recebe notificação de suspensão de obra, decorrente de "dificuldade para sequência das obras enquanto tramita junto à Caixa Econômica Federal documentos relativos aos ajustes de projeto e o orçamento, assim como aguarda a remoção dos ocupantes da beira do canal e áreas das intervenções".

Maio de 2011 - Prefeitura solicita novo projeto da rede elevatória de esgotos, com capacidadee para atender também os moradores da Balsa, para o Sanep.

Setembro de 2011 - Empresa Quality Engenharia e Consultoria Ltda., vencedora da nova licitação para construção das casas, é contratada.

Janeiro de 2012 - Primeiras casas são entregues.

Março de 2012 - Últimas das 58 casas iniciais são entregues.
Maio de 2012 - Quality recebe comunicado de suspensão de obras por falta de liberação de área.
Junho 2013 - Moradores do Anglo lotam Câmara de Vereadores em uma audiência pública para cobrar agilidade no processo.
Julho de 2013 - Empresa Quality Engenharia e Consultoria Ltda. protocola pedido de rescisão de contrato com a prefeitura.